segunda-feira, dezembro 22, 2008

"...Os guarda-redes também morrem ao domingo..."

Por aqui começámos a ficar presos...

"...Teve uma infância estranha, disse Austin. Em última análise - todas as infâncias o são - disse Mister Deluxe. Molero diz, disse Austin, que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então um cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva..."
(páginas iniciais de O que diz Molero, Dinis Machado)

Por aqui havemos de estar nos próximos meses...

"...Vou passar uma vida toda a entender o que é isto, o teatro..."

Quando se inscrevem tantas incertezas na matéria real que nos ocupa, eis que surge a primeira centelha....

Urge dar voz a dois monstros que em pujante pretensão, propomos relativa cumplicidade...

Apenas porque o texto-palavra nos toca de forma particular, numa espécie de fado vadio de um certo Portugal, de um conjunto de referências estéticas e artísticas que comungamos inteiramente...

Torna-se assim em cousa pública, o sonho de dar vida a um espetáculo que paira as nossas cabeças há tempo bastante...

Arrisca-se o primeiro título "...Em que idade do coração se apaga o sorriso dos homens" (Al Berto)

terça-feira, agosto 05, 2008

O elemento escatológico

O dia inteiro. Sentas no banco ao lado do último degrau da escadaria que vai até à igreja, vens suja, tão descuidada. Uma feiúra que denuncia a coisa doença. Murmuras…

- 3 pedras, mais 56 pedrinhas, orquídeas são às dúzias. Ó Joaquim…

O teu património organiza-se em sacos de plástico. Sacos de diferentes supermercados e lojas servem o propósito de guardar diferentes fios e cordas, revistas Maria, uma lata de salsicha aberta, algumas agulhas de tricot, pacotes de bolhacha de aveia já encetados, cabelos de bonecas…

- totoloto, euromilhões, olha a roda, olha a lotaria. Sexta anda a roda!!!!!!!

Uma outra linguagem não acessível, um idioma que recrias diariamente para dar consistência aquilo que só tu vês. Uma pensamento que deriva para tantos lugares e pessoas, sempre a disparar e com nenhuma hipótese de parar.

- Pombo, pombinho, vem aqui à mãe, vem aqui à mãezinha…

Do outro lado, de um lugar que a tua vista não alcança tão facilmente aproxima-se um homem que terá acabado a sua corrida habitual. Faz os exercícios de alongamento, torce e destorce o corpo enquanto tu fitas com invulgar atenção todo aquele aparato muscular. Esboças um pequeno movimento e levantas-te, sentias que tinhas observar com outra proximidade...

- Tou aqui com umas “bexiguezas”, que coisa maldita…

Chegara a hora do momento esperado. Aproximas-te ainda mais, assumes o confronto com o homem da corrida de tal forma, que apenas decides baixar as calças no meio do largo e fazer o que tinhas a fazer – aliviar as tais “bexiguezas”. No semblante do homem da corrida um esgar de nojo e de total constrangimento, no rosto daquela senhora, o sorriso escancarado…

- Olhó MARICAS…Parece que nunca viu !!!!!!!!!!!!!!!

segunda-feira, julho 28, 2008

Mais um bate bola com o Homem

Para ficar sozinho ante o silêncio
O que fazer quando o vazio se impõe assim,
dizei-me a gritar
por favor
O corropio afectivo deixa-me atordoado
Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio
Obedeço-lhe a viver, esponteneamente,
como quem abre os olhos e vê,
sol e flores e árvores e montes
Volto a ti, aos 30 anos
entrego o meu corpo, os meus interstícios
voluntaria ou involuntariamente
ME DOU
Os hospitais cobrem-se de cinza
Ondas de sombra quebram nas esquinas
O lado sombra
resgata-se a doer
com nervo e muito sangue
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Juntam-se as pontas soltas
que me fazem e me cumprem
Urge dar voz...

quinta-feira, julho 10, 2008

A Saga

"...Sacudir dos meus passos a poeira do desencontro..."
Sophia Mello Breyner

terça-feira, maio 06, 2008

Café Mueller




Sou este corpo
em definitivo mergulho pela vida

SOU PINA BAUSCH

segunda-feira, maio 05, 2008

A meias com DRUMMOND...

Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros vizinhos
A linguagem sobe escadas, do mais moço
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
Ao mísero caçula


Somos cinco, Sofia, Marta, Tiago, Diogo, Ricardo.
Comunicação de diferentes sentidos, a fluir com muitos ritmos
O sexo em alternância, 3 rapazolas e 2 moçoilas
Palavras saltitonas, pujantes na cadência que assumem
Baleia, padreco, cascavel, gostosa, metralhas.
Tudo isso?

São seis ou seiscentas
Distâncias que se cruzam, se dilatam
No gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
Os mesmos copos,
O mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?


Quarto-camarata, camas em dois andares,
O wonderbra na silhueta em poster gigante,
O código de comunicação entre os univitelinos
Um buraco que espreita para a outra divisão
Manas meninas-moças a explodirem em plena adolescência
Bruce Lee na televisão da sala, esperava-se a qualquer momento
Tortura de cueca…

São estranhos, próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.


Será que o indevassável cresceu entre nós?
Quando a (minha ) igreja construiu muros de suposta sapiência. Talvez
O “santinho do pau oco” a invejar a vida dos metralhas. Fugir aos cânones.
A Brasileira a provocar muita urticária na mana roliça.
Os nossos limites, os seus sofisticados sistemas de sobrevivência…

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
Vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?


Voltar ao embondeiro, encostar a cabeça
Bambolear uniforme, sentir a ausência do verbo
Canção de embalar,
Adormeço. Seguro. Leve.

quinta-feira, abril 10, 2008

Um carro de SONHO...






sexta-feira, março 28, 2008

CCB, meninos, meninas, senhores, senhoras. Poesia



Aproximação à forma poética



as estrelas estão paradas. Parvas
Os gatos comem moscas cheias de histórias.
Toda a gente sabe



Folhas esparsas, farrapos de ideias
voo de flamingo, casca de sapato



Árvore dependuradas pelas viagens
Felismino, Albertina e Viriato.Nomes

sábado, março 22, 2008

Daqui para a frente

Muitas árvores, relva fresca e muito molhada, minhocas, joaninhas, carreiros de formigas, covas e lugares traiçoeiros, bola de futebol à menina (da barbie), guelas à séria – os especiais e os reles - , um menino mais crescido e uma menina a crescer…

- Eu sou mais interior, sabias, sabias. Sou mais interior!

E a casa na árvore? Repara, tem várias tábuas lá em cima, outros pedaços de madeira a fazer de escadas, e um grande bocado de corda grossa, provavelmente, para descer. É uma pena estrar destruída. Se tivesses uma casa destas…

- Eu tenho um lugar destes. É o meu lugar secreto, só vou lá com as minhas melhores amigas

E o que fazes lá? Brincas com as tuas amigas como brincas comigo, ou vais dormir de olhos abertos, ou vão para lá esconder os vossos sonhos e segredos?? E não me disseste como é, se é numa árvore, se precisamos de uma senha de acesso e um mapa para lá chegar??

- Que parvoíce, claro que não. Nada disso. Aquele é o meu espaço interior, reservado apenas aquilo que eu sou, percebes?

Não, eu sou mais exterior. Sinto-me confortável na sujidade, no acessório, no barulho e no néon. Gosto mesmo do pisca-pisca e daquele bulício nas ruas, gente a falar de qualquer coisa. A maralha e o caos são mais confortáveis.

- Gosto mais de dentro, gosto mais de estar dentro. Cá com as minhas ideias

E agora? Vou-me embora, os nossos pés molhados de terra húmida, o teu caminho vai-te levar para onde??? O que mais queres? O que é que desejas agora mesmo? O que é que farias se tivesses todo o poder do mundo?? Todo, todo !!!!!

- Agora sigo sozinha. Vou crescer mais um bocadinho, não achas???

A noite branca

Não sei como te chamas. Já procurei no catálogo das plantas exóticas, ontem mesmo, dei a volta à minha enciclopédia de espécies raras, e tu simplesmente não encaixas. Uma outra natureza. Cravas as raízes na multidão e soltas silenciosos esgares…

- A noite, esse poço interminável. Como cavar mais fundo??

Várias mantas e outros trajes grosseiros compõem a forma como te apresentas, como se quisesses esconder o teu porte imperial, um passado que se advinha na liderança, na congeminação da mudança, no limiar de uma outra forma de estar…

- A noite, porquê tanta tormenta, quando acabam todas estas dúvidas?

És árvore-guardiã, descobri. A tua expressividade, ou talvez, a forma como se conjugam em ti, - olhar e contracção do músculo facial - , incomodam pelos contornos não humanos. Não és homem, és espectro, és vaga. Continuas a tentar soprar algo pouco tangível…

- A noite dispersa-me, não me permite o contacto, retirou-me a expressão!

Não és condição humana, não és. Ocorre-me a palavra vertiginoso quando te vejo, quando o teu estado de absoluta imobilidade me interpela, com a seguinte proposta…abismo, precipício, irreversível mergulho…

- Mortais traunseuntes à luz do dia, elementos acessórios da minha noite.

domingo, março 09, 2008

Vida dupla

Sempre a fazer merda nos arrebaldes do Miguel Bombarda. Você sabe, o hospital. Eu, o meu irmão,
e a minha santa mãezinha que Deus lhe valhe...

- Ó Alfredo, Albino, onde é que vocês estão???? Desgraçados...

Estávamos em cima de um muro pejado de vidros. Ainda hoje desconheço como fazíamos aquilo. Mas, o Sr.Ramiro ia para dentro e nós - ZÁS-PÁS-TRÁS - logo ao pé-da-laranjeira, fazer o que tinha que ser feito. Gamar laranjas. Enchia o bandulho aqueles macacos da oficina. Vida de aprendiz, muita graxa espalhada.

- Ó Alfredo, porra, vadio dum cabrão!!!

Parece que ainda a ouço, ó Sr.Ricardo. Com 10 anos já andavámos nós a puxar carroça com ferro velho, e o Albino a iniciar-se na Oficina. Só o via a carregar ferramentas mais pesadas do que ele, o corpo todo vergado ao peso de um martelo. Eu punha-me sempre à coca a ver o que é que sobrava. Passavam os malucos e eu berrava...

- Ó maluco, ó maluco, volta para a prisão!!!

A noite aproximava-se, nós na fila da sopa dos pobres. A minha mãe de cabeça baixa erguia uma tijela, e de baixo, a uma outra altura, nós conseguíamos ver com clareza tudo o que poderíamos esperar para enganar a fome. Muita fome, muita fome, Sr.Ricardo. Você não sabe o que é isso.

- Não, não sei meu bom amigo. Não sei o que é sentir verdadeiramente o VAZIO no estômago. Não sei.

Foi um golpe de falcão. Comprámos esta espelunca depois de muitos anos a labutar a sério. Uma pessoa morre de tanta labuta, sr. Ricardo. De sol a sol, sem descansos para a mulher, copos e os miúdos. Foi labutar e padecer. Muito sinceramente, nunca fui homem de andar pelo parque mayer ou nas meninas coristas.
Queria estudar, um dia disse a mim próprio...

- Ó Alfredo, podias ir tirar um curso de contabilidade. Tens a cabeça ainda fresca para essas coisas!!!

Foi assim que me tornei contabilista à noite. Chelas inteiro vem bater-me à oficina por alturas de IRS. Digo-lhe do coração, que você sabe que não sou homem de mentir, em Abril ou Maio, tenho aqui mais gente a tentar safar-se ao fisco, do que a querer passar o respectivo automóvel na inspeccção. Diria que é uma questão de prioridades. Tudo na vida, é uma questão de escolha.
Agora ocorreu-me...

- Por acaso, o Sr. Ricardo, já fez a declaração ????

Não, pois bem, se quiser já sabe que pode contar com o Alfredo. Você sabe que já o safei muita vez.

- No mato, é que safei muitos. Em Angola, salvei muitos amigos. Muitos!!!

Volta e meia vem-me a guerra à cabeça. Porra, um gajo saía para o mato, e tinha licença para matar. Muitas vezes ia com a magana para o mato, mas nunca abandonava a coronha, não fosse o diabo pintar feio. Qualquer coisa que mexia, eu, balázio nos cornos. Limpei vários assim. Várias dezenas...

- Ó Alfredo, vai trabalhar a sério. Isso de contar histórias ao Sr.Ricardo chega. Toda a gente sabe que tu nunca saíste do quartel...durante a guerra!!!!!

Aturo as malcriações deste gajo há mais de 40 anos. Porra, já não podemos voltar ao tempo de suposto heroísmo, que vem logo este pulha a lembrar-me que hoje se olhar para baixo, não consigo ver. Dramático, não conseguir ver...apenas a protuberante barriguinha...apenas...

- Há que apreciar um bom OUVIDOR de histórias. O Sr.Ricardo põe-se mesmo a jeito!!!

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Le ballon rouge




Quero um balão vermelho a perseguir-me, já disse. Não volto atrás, o que está dito está dito, assinado, ponto final.

Balão vermelho em Alfama

Não me venham cá com anjos da guarda, seguranças, nossa senhoras, videovigilância, medidas de precaução especial ...o diabo a sete, quero mesmo um balão vermelho.

Balão vermelho agarrado à barcaça transtejo

Um balão vermelho a seguir-me por todo o lado, qual cão guia, ou perdigueiro fiel de caça. Urge estar perto, ao lado, em cima, em baixo, quando estou a dormir ou mesmo a pensar. A maior parte do meu tempo. E o balão vermelho...

Balão vermelho a esfumaçar na chaminé Quimigal

Chego a casa, o dia de labor intenso na parte mais baixa das costas. Na janela que espreita uma Oliveira, eis que aparece o balão vermelho. Está presente, é só isso que lhe exigo. Estar, apenas.

Balão vermelho cheio de rebuçados e farinha

O caminho faz-se pelas vielas históricas de uma certa cidade. Varinas e criançada a fugir à clausura do espaço interior, uma certa garoa a anunciar-se, olho para cima de relance e sinto o voo do balão vermelho. Salta de telhado em telhado, de história em história, de segredo em segredo.

Balão vermelho a bater furiosamente na parede

Parece-me que é chegada à hora. Estamos sempre em viagem, os objectos da nossa inquietação vão mudando, o balão vermelho sabe há muito ao que veio, sabe há muito o que é suposto fazer na sua viagem. Não plana ou flutua, assume o voo picado. Não, não se trata de um predador. É apenas o balão vermelho.

Balão vermelho a espreitar pelo buraco da fechadura

Um pouco tímido e envergonhado, permanece na errância do seu comportamento infantil. Por ora, apetece-lhe um pouco de intimidade feminina. Quer fazer parte...

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Uma forma de dizer ADEUS...



Não gostava da sala de aula, do silêncio e concentração que o professor exigia. Gostava do espaço-recreio, de subverter no fumo do cigarro, de tecer os amores e desamores da minha turbulenta adolescência. Não estava propriamente interessada na aprendizagem, o espelho começara a reflectir uma beleza que eu deixaria de reconhecer. Aquela não era eu.

- Estás-me a ouvir, Ana ? Será que me estás a ouvir?

Não me recordo certamente da primeira vez que te vi. Talvez tenha esquecido. Sei que conheci a inveja em ti. Eras linda, uma excelente aluna, todos gostavam de ti, eras POPULAR. Eu era apenas a tua amiga. Muito passado deixou de existir, mas lembro-me que me sentia mais segura, mais estável ao teu lado. Trouxeste alguma ordem à minha vida. Ordem e estrutura.

- Não sei o que dizer!

Estávamos em pólos opostos. Eu, faladora, espalhafatosa, fazia questão de dizer a tudo e todos que estava presente. Tu, calma, inibida, tornavas-te presente gradualmente, sem grandes alaridos. Eu e tu, uma amizade imprevista, um vínculo improvável.

- Tinha tanta coisa para te dizer…

Fiz-me na rua, nos cento e sessentas ou na actual Rua Palmira Bastos. O lote 166 e a rua feita de putos imberbes e meninas em pudica adolescência, delimitavam o meu espaço vital. Tu vinhas de Moscavide, terra que ostenta uma profunda tristeza, no semblante dos seus edifícios. Cinzenta, ogre, suja. O teu sorriso escondia a mesma tonalidade.

- Deixei os meus filhos com a minha sogra. Já sabes, não param de fazer merda.

Em casa, o meu pai apresentava-se em soluços, sempre de passagem. De vez em quando parava por Portugal. A minha mãe esfalfava-se para levar a sua prole a bom porto. Eu não lhe facilitava a vida, ora o excesso de peso, ora a escola, ora o comportamento destravado. Às vezes também sentia o teu olhar de reprovação, um olhar terno, compreensivo, um olhar irmão.

- Será que tu me ouves? Tenho a certeza que sim…

Crescemos com itinerários diferentes. Peguei ao trabalho cedo, peregrinei ainda por alguns cursos, mas sentia a urgência do trabalho. A restauração sob diversas formas desenhou o que tem sido a minha vida profissional. O teu itinerário recente dava-me conta de alguém com formação académica sólida a errar numa dependência bancária. Muitas contas, créditos e débitos, e o sentimento de não identificação que saltava à vista de todos. Não gostavas de sorrir para o senhor cliente.

- Não sei o que vai ser da minha vida. Sabes como é…a correria de sempre…


Semanalmente, dividíamos as nossas angústias da vida adulta. Os dislates do trabalho, o crescimento sinuoso dos meus filhos, a tua relação conjugal, planos de viagens, novelas e filmes, financiamentos a acumular, os gajos bons e os assim-assim, o desconforto permanente com o corpo, a doença que começara a aparecer. Muito devagar.

- O meu irmão também está aqui. Veio comigo, eu não consegui vir sozinha…

Muito devagar. FILHA DA PUTA. FILHA DA PUTA. FILHA DA PUTA. Apareceu sob a forma de alergia, e foi assumindo diferentes diagnósticos. O corpo lentamente começara a mudar, lentamente deixaste de te sentir mulher. As chagas queimavam em lume brando, e o meu sentimento de impotência crescia a ritmo de galope. Uma raiva profunda de não te sentir acompanhada, cuidada. Por onde andou o teu marido, por onde andou o senhor pavão?

- Força, minha querida. Tu és forte!! Sei que vais superar tudo isso…

Senti o fim. A tua falsa anuência com a cabeça segredava-me isso. Foi a nossa despedida. A nossa última grande conversa. Não estávamos em minha casa, estávamos numa Unidade de Cuidados Intensivos. Volto a essa conversa em todos os instantes da minha vida e dou-me conta que me ensinaste a olhar mais uma vez para o futuro. Os meus filhos. O meu amor. A minha família. Olhar para a frente.

- Estou, sempre estarei.

domingo, janeiro 20, 2008

Conto de Natal - Estacionamento

Ela,
o coração a bater esperanças.

Ele,
o pensamento a fazer corte aquele dia.

Ela,
Netos, filhos, dinheiro, mãe. Agora, um conjunto desinteressante.

Ele,
projectos em papel vegetal, ferramentas tridimensionais. Agora, outro conjunto desinteressante.

Ela,
corpo projectado para o ataque. Avançar, não esperar!

Ele,
corpo pensado no jogo, para o jogo. Avançar, esperar, avançar, esperar!

Ela,
redondel da Portela. O centro, mais precisamente o estacionamento. No horizonte próximo, a mota e o rabo de cavalo!

ACENO EFUSIVO

Ele,
Show-time. Assumir a pose e calçar a mota. Impressionar!

ACENO EFUSIVO

Ela,
Nasce, irrompe, explode. Natal...

Ele,
Nasce, irrompe, explode. Natal...

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Nunca é tarde para se começar...

Fidel Castro tira um retrato ao presidente Lula.

A Caixa preta...

10:25

Uma longa espera se avizinhara. Rapaz de poucos anos, umas reminescências capilares pelo rosto, a irrequietude que cansa na presença dos outros. A estreia seria aquela noite. Mais precisamente às 22:00

12:19

Trabalhador, respigador de mãos cheias, vai exercendo o seu ofício na outra margem, na cidade de sonho e futuro. Dizem. Ele não diz nada, só fala com os seus interstícios. Pergunta-se como, como??

14:50

A frase que desarma e clama pelo regresso ao real - Você está muito estranho hoje, parece que deixou de estar comigo - Não, não, está apenas de uma forma diferente. Tem vontade de dizer, todos temos os nossos dias. Mas não diz. Há dias menos bons para a respiga, pensa simplesmente.

15:50

O Palco, o duelo. Alguma coisa nele desejava comunicar, alguma coisa naquele tablado negro desejava não comunicar. Tratava-se de um palco de guerra, uma situação limite. Será que vai para o front ou enfia-se nas trincheiras? Não sabe responder, não é hora para grandes elaborações.

18:38

Precipitam-se as contracções e a impossibilidade de estar no plano real. Saem monossílabos, o som do trombone estala por dentro. Grave, muito grave é esse som que não o deixa serenar. Todo o texto passa em slide-show à sua frente. Vezes e vezes e vezes.

20:13

Alguém fala em comer. Nada entra, só pode sair. Não é hora de pensar em necessidades básicas. Alimentação, eliminação, evacuações, três movimentos primários da vida, deixaram simplesmente de existir. Só tinha uma única necessidade.

21:49

O Grupo em roda, impossível dar forma aquele verbo. Impossível. Apenas tremer e assumir o descontrolo. Estava descontrolado, as pernas pareciam sofrer de alguma enfermidade. A certeza que na próxima hora alguma coisa iria acontecer com a absoluta ausência do seu controlo. Deixa o corpo tremer, parecia dizer. Deixa o corpo tremer. Deixa, vá lá...

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Conto de Natal - Gasolina 95

Ela,
A urgência de abastecer o automóvel. Bomba de gasolina.

Ele,
Uma saída a mais. Dizer não à rotina.

Ela,
Espreitar os periódicos. A vida real e concreta.

Ele,
Discurso engatilhado. Espreitava-a.

Ela,
Distracção e mudez. Outra forma de silêncio.

Ele,
Com o seu obséquio, dizia-me por gentileza as horas.

Ela,
Outra vez o despojo e atrevimento. O quê ???

Ele,
É uma pena que não haja aqui uns croquetes. Vinham mesmo a calhar.

Ela,
Não estou a perceber. Adeus.

Ele,
Uma vez mais, adeus súbito. Talvez arriscar…

O TELEFONE

Ela,
as costas escondem o sorriso que se abre descontrolado. Dispara.

O NÚMERO

Ele,
Agarrou o número, sentiu um outro tempo. Sentiu.

Ela,
Desaba.Chora.Ri.Chora.RI.Chora.Ri.Chora.Ri.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Conto de Natal - Croquetes

Ela,
mulher séria, uma senhora idade, pouca dada às coisas do Amor.

Ele,
um estranho, casaco de cabedal a puxar pró antigo. Estilo.

Ela,
cansaço a mais, podia ler-se nos olhos. Até quando, dizia.

Ele,
Pelo contrário, inércia a mais. Até quando, dizia.

Ela,
uma cuidadora, filhos, netos, velhos. Sim, velhos.

Ele,
estiradora empoeirada, perdeu a utilidade. Um outro tempo.

Ela,
timidez, voz em fio, uns croquetes se faz favor. Muita fome.

Ele,
nuvem de fumo, outro lado do balcão. Curiosa timidez.

Ela,
fumar Mata, podia ler naquele maço de tabaco.

Ele,
ninguém diria que fuma. Cigarro ocasional?

Ela,
tanto despojo e atrevimento! Adeus.

Ele,
Adeus. Olhar adolescente. Embeiçado.