terça-feira, fevereiro 10, 2009

No reino de Pacheco

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Quero viver (deixai-nos rir!)
seria muito exigir...
Vida mental? Com certeza!
Vida por de trás da testa
será tudo o que nos resta?
Uma ideia é uma ideia
- e até parece nossa! -
mas quem viu uma andorinha
a puxar uma carroça?

Se à ideia não se der
O braço que ela pedir,
a ideia, por melhor
que ela seja ou queira ser,
não será mais que bolor,
pão abstracto ou mulher
sem amor!

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Neste reino de Pacheco
- do que era todo testa,
do que já nada dizia,
e só sorria, sorria,
do que nunca disse nada
a não ser prà galeria,
que também não o ouvia,
do que, por detrás da teste,
tinha a testa luzidia,
neste reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-las de pernas pró ar?

Por isso, aqui, acolá
tudo pode acontecer,
que as ideias saem fora
da testa de cada qual
para que a vida não seja
só mentira, só mental...

Alexandre O'Neil

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Joe Louis nosso campeão

Primeiro o jornal Notícias saiu contente e disse: — Max
Schmmeling bateu o negro Joe Louis e já não tem adversário.
Isto foi uma cacetada inesperada no meu coração e estendeu-me
no centro das miseráveis lonas do ringue humilhante
eu pobre Joe groggy de luvas no chão
palavra d'honra eu Joe groggy
mais groggy de solidão
mais groggy de amargura
mais groggy de fel.

Um dia o jornal Notícias teve que dizer tristemente: — Joe
Louis na desforra pôs Max Schmmeling K.O. no 1º round.
E então pulei das velhas lonas da tristeza
ágil gato a saltitar dançarino de samba
a sambar no Max Schmmeling nas ruas
embandeiradas da cidade de Berlim
o queixo de Max Schmmeling
o cinismo do ministro
da informação Goebels
da propaganda
para eu negro Joe Louis bater mais forte
meu felino jogo maravilhoso de pés estrategicamente
desnorteando os repórteres com ordens para falar mal de mim
meus punhos mil marretas certeiras nas fuças dos informadores
eu suando a moer Goebels seco no pilão até ouvir
desmoronar a soco o Reichstag nos maxilares
do Max Schmmeling em chamas.

Mas depois da confissão do jornal Notícias de Lourenço Marques
a anunciar a desforra do mecânico Joe Louis campeão
encostando às cordas o cidadão nazi Max Schmmeling
comecei a pensar no boxe muito a sério
e quando o filho do sr. engenheiro Peida-Gorda
me deu as suas rasteiras do costume no futebol
saí do meu canto obstinado como um leão desenjaulado
toda a astúcia do leopardo ferido na minha cabeça
os maiores gongs do mundo a dar-me sinal
eu na melhor pose do campeão Joe Louis
as luvas levantadas como martelos
o pé esquerdo à frente
o pé direito mais atrás
a ponta do queixo encaixada na curva do ombro
meus olhos dentro dos olhos traiçoeiros
do filho do sr. engenheiro Peida-Gorda
a cabeça de lado como na foto da página desportiva
e agarrei na esquerda do nosso Joe Louis
e dei-lhe no fígado!
Agarrei na direita do nosso Joe Louis
e mandei-lhe no crânio!
Depois uma finta e encostei o filho
do sr. engenheiro Peida-Gorda ao canto vermelho do meu
desespero mais desesperado no grande ringue
e meto-lhe duas na boca do estômago!
Bombardeio-lhe o sofisma com dois directos
e saltitando à frente de toda a Alemanha faço
treino de «punching-ball» ao vivo
aplico outra finta de tronco e minhas mãos
saboreiam-lhe os dentes a saltar das mil dentaduras
martelo-lhe com toda a força os flancos S.S.
abafo-lhe com um potente «jab» da esquerda
três costelas e arrumo
de costas na areia
o problema!

E agora é assim mesmo quando outro filho de Peida-Gorda
me dá caneladas ou rasteiras do costume
vou buscar o nosso Joe Louis
ele vem e não discuto: — Arreio!

Mundau:
Faz também do mecânico Joe Louis uma filosofia
não sejas um panhonha Bombo-de-festa a apanhar dos Peida-Gordas
chama logo o «opercut» do nosso amigo Joe Louis
e dá-lhes!

Chama logo o potente «swing» do nosso amigo Joe Louis
e manda-lhes!

E quanto aos significados vais senti-los nos urros da multidão
e nos milhões de EUS pulando eufóricos das lonas do Notícias
todos no ringue voando no braço levantado de Joe Louis
os fotógrafos a fotografar o nosso estilo
e o nosso filho do Peida-Gorda
ao comprido no tapete
embebedado
a murro!

Uma coisa:
A desforra do nosso Joe Louis frente ao Max Schmmeling
veio no telégrafo e saiu no jornal Notícias
mas quanto ao resto em Lourenço Marques...
Nada!

O resto não saiu no jornal Notícias
não saiu no Rádio Clube de Moçambique.
Só o Brado Africano é que está a dizer.
Portanto guarda bem guardado este Brado
e treina muito bem
este boxe!

1952
José Craveirinha
(cortado pela Censura a O Brado Africano em 1954)

domingo, janeiro 25, 2009

Pontapé na crise...

Que se lixem as palavras catastrofistas...
Fiquemos com Nina Simone...

segunda-feira, janeiro 05, 2009

O nosso primeiro amor foi sempre uma grande p...

A bela do bairro

Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor

Fernando Assis Pacheco - A musa irregular

domingo, janeiro 04, 2009

O cimento, a bola e o calhau




"O Eusébio marca livres de trinta metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, MAS EU FUI O MAIOR CRAQUE DA RUA GUERRA JUNQUEIRO E ESTÁ PARA NASCER UM SUCESSOR DIGNO DESSE TÍTULO."

(...)

«E se o miúdo jogasse à baliza?»
Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A matózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotográfo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria de outro modo, pois logo à primeira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui-me a ele, encostei delicamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força «do catarino», como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para escadas agarrado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água.
«Quero pois», urrou. «Quero a bilha e quero um calhau para partiros focinhos a esse gajo do cento e dezoito!»

Fernando Assis Pacheco, Memórias de um Craque

segunda-feira, dezembro 22, 2008

"...Os guarda-redes também morrem ao domingo..."

Por aqui começámos a ficar presos...

"...Teve uma infância estranha, disse Austin. Em última análise - todas as infâncias o são - disse Mister Deluxe. Molero diz, disse Austin, que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então um cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva..."
(páginas iniciais de O que diz Molero, Dinis Machado)

Por aqui havemos de estar nos próximos meses...

"...Vou passar uma vida toda a entender o que é isto, o teatro..."

Quando se inscrevem tantas incertezas na matéria real que nos ocupa, eis que surge a primeira centelha....

Urge dar voz a dois monstros que em pujante pretensão, propomos relativa cumplicidade...

Apenas porque o texto-palavra nos toca de forma particular, numa espécie de fado vadio de um certo Portugal, de um conjunto de referências estéticas e artísticas que comungamos inteiramente...

Torna-se assim em cousa pública, o sonho de dar vida a um espetáculo que paira as nossas cabeças há tempo bastante...

Arrisca-se o primeiro título "...Em que idade do coração se apaga o sorriso dos homens" (Al Berto)

terça-feira, agosto 05, 2008

O elemento escatológico

O dia inteiro. Sentas no banco ao lado do último degrau da escadaria que vai até à igreja, vens suja, tão descuidada. Uma feiúra que denuncia a coisa doença. Murmuras…

- 3 pedras, mais 56 pedrinhas, orquídeas são às dúzias. Ó Joaquim…

O teu património organiza-se em sacos de plástico. Sacos de diferentes supermercados e lojas servem o propósito de guardar diferentes fios e cordas, revistas Maria, uma lata de salsicha aberta, algumas agulhas de tricot, pacotes de bolhacha de aveia já encetados, cabelos de bonecas…

- totoloto, euromilhões, olha a roda, olha a lotaria. Sexta anda a roda!!!!!!!

Uma outra linguagem não acessível, um idioma que recrias diariamente para dar consistência aquilo que só tu vês. Uma pensamento que deriva para tantos lugares e pessoas, sempre a disparar e com nenhuma hipótese de parar.

- Pombo, pombinho, vem aqui à mãe, vem aqui à mãezinha…

Do outro lado, de um lugar que a tua vista não alcança tão facilmente aproxima-se um homem que terá acabado a sua corrida habitual. Faz os exercícios de alongamento, torce e destorce o corpo enquanto tu fitas com invulgar atenção todo aquele aparato muscular. Esboças um pequeno movimento e levantas-te, sentias que tinhas observar com outra proximidade...

- Tou aqui com umas “bexiguezas”, que coisa maldita…

Chegara a hora do momento esperado. Aproximas-te ainda mais, assumes o confronto com o homem da corrida de tal forma, que apenas decides baixar as calças no meio do largo e fazer o que tinhas a fazer – aliviar as tais “bexiguezas”. No semblante do homem da corrida um esgar de nojo e de total constrangimento, no rosto daquela senhora, o sorriso escancarado…

- Olhó MARICAS…Parece que nunca viu !!!!!!!!!!!!!!!

segunda-feira, julho 28, 2008

Mais um bate bola com o Homem

Para ficar sozinho ante o silêncio
O que fazer quando o vazio se impõe assim,
dizei-me a gritar
por favor
O corropio afectivo deixa-me atordoado
Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio
Obedeço-lhe a viver, esponteneamente,
como quem abre os olhos e vê,
sol e flores e árvores e montes
Volto a ti, aos 30 anos
entrego o meu corpo, os meus interstícios
voluntaria ou involuntariamente
ME DOU
Os hospitais cobrem-se de cinza
Ondas de sombra quebram nas esquinas
O lado sombra
resgata-se a doer
com nervo e muito sangue
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Juntam-se as pontas soltas
que me fazem e me cumprem
Urge dar voz...

quinta-feira, julho 10, 2008

A Saga

"...Sacudir dos meus passos a poeira do desencontro..."
Sophia Mello Breyner