domingo, março 04, 2007

Dizer não !!!

O outro lado da linha, uma parte da minha vida, estilhaços daquilo que procurei...

Parabéns, meu pai !!!

O telefone, a tua voz -grave e sumidiça - a rodopiar sobre um dia de idade redonda. 60 anos. Parecias feliz em companhia das palavras de circunstância de um dos teus filhos. Queria dizer algo mais, queria significar todas as noites que a tua lembrança sangra o sonho. Derramo-me em polaroids descoloridas, instantâneos que retratam o medo.

Parabéns, meu pai !!!

O cachimbo no canto da boca, um ar altivo e pesado, contornos de fumo em círculos, o cheiro a ficar agarrado a cada canto da casa. O café pela manhã, a porta entreaberta, o teu dia que se pensava na sanita, muito poucas palavras, a despedida apressada. A seco, de costas, em fuga.

Parabéns, meu pai !!!

O aeroporto, porta de chegada. A espera. Brasil, Angola, EUA, locais fantasiados na tua ausência. Horas madrugadoras, muitas ramelas no bordo interno dos olhos, cabelos em desalinho, o nervosismo em palavras mais acesas naquele jogo verbal entre a mana velha e a mãe. Estavas a chegar. Em nós instalava-se devagar a tua iminente chegada. Um carro de rodas metálicas, cinzento-prata, muitas malas, talvez uma prenda desejada há muito. O teu porte imperial a irromper naquela avenida descendente. Chegaste, queríamos um abraço perdido no tempo que andaste em roda livre por todos aqueles países. Um abraço.

Parabéns, meu pai !!!

Uma vez mais, a tua voz ao telefone. Perguntavas-me todos os meses…Como estás meu filho?...A resposta invariável, está tudo bem pai, tudo bem. A escola, os manos, o Sporting, conversas à volta de nada, não sabia responder mais nada para além de tudo bem. A minha única resposta, o peso acumulado, a sensação de estar ausente na presença da tua voz. Muitos meses, anos, a ausência tornada presente entre um tudo bem, talvez, não sei, a anuência evasiva à tua forma característica de dizeres presente.

Parabéns, meu pai !!!

O Renault 25, o nosso carro-sonho. O meu pai tem um carro que fala, que nos diz quando a porta está mal fechada, o teu pai ainda conduz carros que não falam. Sim, o carro afirmava um pai idealizado na ida ao velhinho estádio de Alvalade, onde se desfilavam histórias do passado, das vitórias de um outro tempo, dos rádios a pilha encostados aos ouvidos, das almofadas “emblemadas” pelo leão, sentava-me a teu lado na fila 33 lugar 7 e esperava. Esperava que o meu imaginário fizesse rodopios em redor da tua vida num passado recente.
O mesmo carro que nos transportava até ao estádio nacional, raquetes na mão, o saibro debaixo dos pés, um jogo de match-points, bola lá, bola cá, o suor empoeirado, o esgar feliz no teu rosto, tinhas conseguido ir ao nosso encontro. Jogar ténis, voltar a ti, aos momentos fragmentados do orgulho que crescia na tua condição de pai. O meu pai tem um carro que fala, o teu não. Sim, é verdade, o meu pai…

Parabéns, meu pai !!!

17 anos e um cadeirão, eis o que me esperava quando o meu mapa de referências subitamente se transforma. Tinha chegado ao Brasil. Estava, enfim, na tua presença. O cadeirão convidava-me a estar na tua cabeceira, urgia começar a ouvir-te, apreender as histórias que te fizeram filho, pai, avô, homem de negócios, empreendedor de mãos cheias, uma admiração que crescia sempre que uma nova história se erguia no meu intimo. Ao redor, a escuridão de um quarto arrefecido pela refrigeração, as imagens televisionadas a sucederem-se, a recusa pela luz natural, novamente, as histórias de outrem, a tonalidade cinzenta, parda, descolorida que se foi sedimentando pela calada, digamos, de forma insidiosa.

Parabéns, meu pai !!!

A herança, o legado de uma condição marginal. Finanças, IRS, Segurança Social, figura de contribuinte, licenças camarárias, formalismos burocráticos, ratificações cegas, dívidas trabalhistas, entidades fantasmas, contextos ausentes de significado ao longo da tua vida. Guardo tudo isso com admiração confessa, conservo esse registo border-line em muitas instâncias da minha vida, uma impulsividade que me impele a subverter muitas coisas estabelecidas, que me empurra para o pai que ainda idealizo.

Parabéns, meu pai !!!

A tua fragilidade, um olhar que assume uma outra nuance. Não podes oscilar mais entre polaridades extremas, não, ergo o braço e digo basta. Um exercício de auto-comiseração que me deixa completamente carcomido, sem espaço para voltar a respirar ar de segurança e determinação. Dizer não, é tudo quanto me resta para te acomodar em sonhos reparadores.
Dizer NÃO ...