sexta-feira, outubro 13, 2006

A Paternidade adiada...(3)

Maternidade Alfredo da Costa. Paredes vertiginosas, impossíveis de tanta brancura gasta, bocas aturdidas de cansaço e saturação, a vontade estampada de não fazer mais nada…

Onde é que eu estou? Alguém me diz onde é que eu estou?? Que cama é esta, porque é que estou deitada e sinto tanta dor?? Que coisa horrosa, janelas foscas, lâmpadas sobre bebés, caixas de vidro, muitas mulheres com ar estafado!! Paredes bolorentas, algumas pessoas de branco a passar à minha frente, choro de bebé, porra, mas onde é que eu estou? Não, não, não, não pode ser, é, será? Não, merda, não pode ser?? F..i..lh..o...NÃOOOOO....Na caixinha ao meu lado, tanto pêlo, bochechas gordas, e aquela coisa gusmenta junto ao nariz. Não, não é meu filho, estou aqui por engano. Dói tanto junto ao umbigo, o que se passa?

- Tem um rico menino!

Mas quem és tu? Que é que estás para aí a dizer? Rico menino? Cala-te, Não quero ouvir !!! Quem me dera que estes pensamentos tivessem voz. Cala-te, não é o meu menino. Tenho 13 anos, vivo onde ninguém quer morar, 4ª classe, nunca trabalhei, os meus cotas estão muito longe. Novamente a voz daquele gajo de branco...

- Um rico menino!

O quê? Quer-me tocar? Não, todo este hospital já me tocou, não , nem pensar. A bazar à minha frente, já!!! Ah, quer ver os pontos, pare com isso, não lhe dou o direito. Pare, por favor !!! Porque não consigo dizer-lhe para parar? Vá à sua vidinha, com as outras mãe todas. Ponha-se a andar daqui para fora...
- Um rico menino!

13 anos, não faço ideia de quem terá sido o f.d.p. que me fez este belo serviço. Deitada ao lado destas mulheres, quero voltar para o bairro. Toda a gente a olhar para mim, não sou um ET, parece que as ouço todas, tão novinha, uma menina que devia andar na escola, igualzinha à minha mais velha. Calem-se, já disse !!! Da minha vida eu é que sei, metam-se nas vossas vidinhas ridículas...

- Um rico menino!

Começaste a chorar baixinho, o que é que eu faço? Olho à minha volta, sim, é só copiar o que as outras mulheres fazem. Segurar-te, aiiii, que medo, não, vais-te partir assim, não, pára quieto, pareces o meu boneco julião, ai, ai, ai, ai!!! Ajuda-me, tem paciência, não sei fazer isto, horrível, não sei, MÃAAAAAE. Não sei...

- Um rico menino!

Já ouvi, não precisa de repetir, sim, tá com fome. Preciso de o amamentar!!! Gostava de lhe poder dizer para ficar, por favor, fique aqui, não sei fazer isto. Por favor, ouça os meus pensamentos, por favor, fique aqui!!! Encosto-o junto a mim, sinto o coração dele a bater, tenho que fazer tudo como o gajo de branco me disse. Aproximo o queixo dele, umas pequenas carícias na bochecha, envolvo-o no meu peito............PÁRA, PÁRA, isso é insuportável, pára, não consigo, não consigo, não consigo, dói tanto, dói tanto....Porque é que eu tou a chorar?? Não quero chorar...Meu filho, sim, meu filho !!!!

- Um rico menino!

Um rico menino tem que ter nome, penso eu. Tenho que ligar para o bairro, alguém tem que avisar a minha tia, dizer-lhe que SOU MÃE, parece inacreditável, usar essa palavra para me difinir, para caracterizar essa nova condição que nasceu em mim. Ela vai apanhar um susto, não vai perceber nada, vai achar que é mais uma das minhas brincadeiras. Nunca se viu barriga, como foi isto acontecer??? Boa pergunta, senhor enfermeiro, tenho que lhe dar um nome. Bruno Maurício? Não. Taonan Almeida? Não. Kelvin Thomas? Não. Rivelino dos Santos? Não. Bertoldo António? Não. Qual será o teu nome, meu filho?? Fortunato, sim, vejo-te como Fortunato, tá decidido, serás Fortunato...

- Um rico menino!

Outra vez, filho. Não pode ser, Fortunato, estão todos a dormir aqui. Daqui a pouco, isto passa a ser uma choradeira pegada. Filhinho...schiii...schiiii, vem para pertinho de mim, pronto, pronto, já passou, cólica má, pronto, pronto. Não podes tar com fome, só pode ser mais uma noite cheio da cólicas...Calma, Fortunato, por favor, olha o Pedro já acordou, daqui a nada, acorda o Francisco, a Madalena e aquela menina lá do canto. Vá...schiuu...schiuuu, dorme, meu anjinho, dorme que isso já vai passar....não consigo acalmar o meu próprio filho, que desespero, que aflição....

- Um rico menino!

Sim, pode pegá-lo, sim, tou exausta, estas 3 noites sem pregar olho, toda a gente acordada por causa dele. Tudo bem, pode ir dar uma volta com ele. Vejo-te a sair do quarto, ao colo do enfermeiro, não, não me pode tirar o filho, ainda o ouço a dizer há uns segundos atrás...está exausta mãe, eu vou levá-los por uns instantes...Não, não aceito. Onde é que estás Fortunato?? Onde?? Onde??? Saio do quarto e vejo-te no final deste corredor enorme, a dormir tranquilamente, embalado por uma dengosa melodia. Não, não é o pai, tu sabes bem disso. Não, não é o pai...

2 comentários:

Anónimo disse...

É a dura realidade não só da Tuga, mas aqui de Angola também, mas ao invés de hospitais conseguem no máximo, uma cama emprestada até o momento do parto e uma parteira com 5 litros de caporoto e mais suja que porco na lama em dia de tempestade. Mas no século 19 essa era a idade da fertelidade... Mudam-se os anos,muda-se as...incertezas e nao as vontades.

Abração

mjoão disse...

De tão real que é, tão imensamente cruel ao mesmo tempo...

Um enorme beijinho ;)