quinta-feira, janeiro 29, 2009

Joe Louis nosso campeão

Primeiro o jornal Notícias saiu contente e disse: — Max
Schmmeling bateu o negro Joe Louis e já não tem adversário.
Isto foi uma cacetada inesperada no meu coração e estendeu-me
no centro das miseráveis lonas do ringue humilhante
eu pobre Joe groggy de luvas no chão
palavra d'honra eu Joe groggy
mais groggy de solidão
mais groggy de amargura
mais groggy de fel.

Um dia o jornal Notícias teve que dizer tristemente: — Joe
Louis na desforra pôs Max Schmmeling K.O. no 1º round.
E então pulei das velhas lonas da tristeza
ágil gato a saltitar dançarino de samba
a sambar no Max Schmmeling nas ruas
embandeiradas da cidade de Berlim
o queixo de Max Schmmeling
o cinismo do ministro
da informação Goebels
da propaganda
para eu negro Joe Louis bater mais forte
meu felino jogo maravilhoso de pés estrategicamente
desnorteando os repórteres com ordens para falar mal de mim
meus punhos mil marretas certeiras nas fuças dos informadores
eu suando a moer Goebels seco no pilão até ouvir
desmoronar a soco o Reichstag nos maxilares
do Max Schmmeling em chamas.

Mas depois da confissão do jornal Notícias de Lourenço Marques
a anunciar a desforra do mecânico Joe Louis campeão
encostando às cordas o cidadão nazi Max Schmmeling
comecei a pensar no boxe muito a sério
e quando o filho do sr. engenheiro Peida-Gorda
me deu as suas rasteiras do costume no futebol
saí do meu canto obstinado como um leão desenjaulado
toda a astúcia do leopardo ferido na minha cabeça
os maiores gongs do mundo a dar-me sinal
eu na melhor pose do campeão Joe Louis
as luvas levantadas como martelos
o pé esquerdo à frente
o pé direito mais atrás
a ponta do queixo encaixada na curva do ombro
meus olhos dentro dos olhos traiçoeiros
do filho do sr. engenheiro Peida-Gorda
a cabeça de lado como na foto da página desportiva
e agarrei na esquerda do nosso Joe Louis
e dei-lhe no fígado!
Agarrei na direita do nosso Joe Louis
e mandei-lhe no crânio!
Depois uma finta e encostei o filho
do sr. engenheiro Peida-Gorda ao canto vermelho do meu
desespero mais desesperado no grande ringue
e meto-lhe duas na boca do estômago!
Bombardeio-lhe o sofisma com dois directos
e saltitando à frente de toda a Alemanha faço
treino de «punching-ball» ao vivo
aplico outra finta de tronco e minhas mãos
saboreiam-lhe os dentes a saltar das mil dentaduras
martelo-lhe com toda a força os flancos S.S.
abafo-lhe com um potente «jab» da esquerda
três costelas e arrumo
de costas na areia
o problema!

E agora é assim mesmo quando outro filho de Peida-Gorda
me dá caneladas ou rasteiras do costume
vou buscar o nosso Joe Louis
ele vem e não discuto: — Arreio!

Mundau:
Faz também do mecânico Joe Louis uma filosofia
não sejas um panhonha Bombo-de-festa a apanhar dos Peida-Gordas
chama logo o «opercut» do nosso amigo Joe Louis
e dá-lhes!

Chama logo o potente «swing» do nosso amigo Joe Louis
e manda-lhes!

E quanto aos significados vais senti-los nos urros da multidão
e nos milhões de EUS pulando eufóricos das lonas do Notícias
todos no ringue voando no braço levantado de Joe Louis
os fotógrafos a fotografar o nosso estilo
e o nosso filho do Peida-Gorda
ao comprido no tapete
embebedado
a murro!

Uma coisa:
A desforra do nosso Joe Louis frente ao Max Schmmeling
veio no telégrafo e saiu no jornal Notícias
mas quanto ao resto em Lourenço Marques...
Nada!

O resto não saiu no jornal Notícias
não saiu no Rádio Clube de Moçambique.
Só o Brado Africano é que está a dizer.
Portanto guarda bem guardado este Brado
e treina muito bem
este boxe!

1952
José Craveirinha
(cortado pela Censura a O Brado Africano em 1954)

domingo, janeiro 25, 2009

Pontapé na crise...

Que se lixem as palavras catastrofistas...
Fiquemos com Nina Simone...

segunda-feira, janeiro 05, 2009

O nosso primeiro amor foi sempre uma grande p...

A bela do bairro

Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor

Fernando Assis Pacheco - A musa irregular

domingo, janeiro 04, 2009

O cimento, a bola e o calhau




"O Eusébio marca livres de trinta metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, MAS EU FUI O MAIOR CRAQUE DA RUA GUERRA JUNQUEIRO E ESTÁ PARA NASCER UM SUCESSOR DIGNO DESSE TÍTULO."

(...)

«E se o miúdo jogasse à baliza?»
Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A matózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotográfo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria de outro modo, pois logo à primeira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui-me a ele, encostei delicamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força «do catarino», como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para escadas agarrado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água.
«Quero pois», urrou. «Quero a bilha e quero um calhau para partiros focinhos a esse gajo do cento e dezoito!»

Fernando Assis Pacheco, Memórias de um Craque