sexta-feira, março 28, 2008
sábado, março 22, 2008
Daqui para a frente
Muitas árvores, relva fresca e muito molhada, minhocas, joaninhas, carreiros de formigas, covas e lugares traiçoeiros, bola de futebol à menina (da barbie), guelas à séria – os especiais e os reles - , um menino mais crescido e uma menina a crescer…
- Eu sou mais interior, sabias, sabias. Sou mais interior!
E a casa na árvore? Repara, tem várias tábuas lá em cima, outros pedaços de madeira a fazer de escadas, e um grande bocado de corda grossa, provavelmente, para descer. É uma pena estrar destruída. Se tivesses uma casa destas…
- Eu tenho um lugar destes. É o meu lugar secreto, só vou lá com as minhas melhores amigas
E o que fazes lá? Brincas com as tuas amigas como brincas comigo, ou vais dormir de olhos abertos, ou vão para lá esconder os vossos sonhos e segredos?? E não me disseste como é, se é numa árvore, se precisamos de uma senha de acesso e um mapa para lá chegar??
- Que parvoíce, claro que não. Nada disso. Aquele é o meu espaço interior, reservado apenas aquilo que eu sou, percebes?
Não, eu sou mais exterior. Sinto-me confortável na sujidade, no acessório, no barulho e no néon. Gosto mesmo do pisca-pisca e daquele bulício nas ruas, gente a falar de qualquer coisa. A maralha e o caos são mais confortáveis.
- Gosto mais de dentro, gosto mais de estar dentro. Cá com as minhas ideias
E agora? Vou-me embora, os nossos pés molhados de terra húmida, o teu caminho vai-te levar para onde??? O que mais queres? O que é que desejas agora mesmo? O que é que farias se tivesses todo o poder do mundo?? Todo, todo !!!!!
- Agora sigo sozinha. Vou crescer mais um bocadinho, não achas???
A noite branca
Não sei como te chamas. Já procurei no catálogo das plantas exóticas, ontem mesmo, dei a volta à minha enciclopédia de espécies raras, e tu simplesmente não encaixas. Uma outra natureza. Cravas as raízes na multidão e soltas silenciosos esgares…
- A noite, esse poço interminável. Como cavar mais fundo??
Várias mantas e outros trajes grosseiros compõem a forma como te apresentas, como se quisesses esconder o teu porte imperial, um passado que se advinha na liderança, na congeminação da mudança, no limiar de uma outra forma de estar…
- A noite, porquê tanta tormenta, quando acabam todas estas dúvidas?
És árvore-guardiã, descobri. A tua expressividade, ou talvez, a forma como se conjugam em ti, - olhar e contracção do músculo facial - , incomodam pelos contornos não humanos. Não és homem, és espectro, és vaga. Continuas a tentar soprar algo pouco tangível…
- A noite dispersa-me, não me permite o contacto, retirou-me a expressão!
Não és condição humana, não és. Ocorre-me a palavra vertiginoso quando te vejo, quando o teu estado de absoluta imobilidade me interpela, com a seguinte proposta…abismo, precipício, irreversível mergulho…
- Mortais traunseuntes à luz do dia, elementos acessórios da minha noite.
domingo, março 09, 2008
Vida dupla
Sempre a fazer merda nos arrebaldes do Miguel Bombarda. Você sabe, o hospital. Eu, o meu irmão,
e a minha santa mãezinha que Deus lhe valhe...
- Ó Alfredo, Albino, onde é que vocês estão???? Desgraçados...
Estávamos em cima de um muro pejado de vidros. Ainda hoje desconheço como fazíamos aquilo. Mas, o Sr.Ramiro ia para dentro e nós - ZÁS-PÁS-TRÁS - logo ao pé-da-laranjeira, fazer o que tinha que ser feito. Gamar laranjas. Enchia o bandulho aqueles macacos da oficina. Vida de aprendiz, muita graxa espalhada.
- Ó Alfredo, porra, vadio dum cabrão!!!
Parece que ainda a ouço, ó Sr.Ricardo. Com 10 anos já andavámos nós a puxar carroça com ferro velho, e o Albino a iniciar-se na Oficina. Só o via a carregar ferramentas mais pesadas do que ele, o corpo todo vergado ao peso de um martelo. Eu punha-me sempre à coca a ver o que é que sobrava. Passavam os malucos e eu berrava...
- Ó maluco, ó maluco, volta para a prisão!!!
A noite aproximava-se, nós na fila da sopa dos pobres. A minha mãe de cabeça baixa erguia uma tijela, e de baixo, a uma outra altura, nós conseguíamos ver com clareza tudo o que poderíamos esperar para enganar a fome. Muita fome, muita fome, Sr.Ricardo. Você não sabe o que é isso.
- Não, não sei meu bom amigo. Não sei o que é sentir verdadeiramente o VAZIO no estômago. Não sei.
Foi um golpe de falcão. Comprámos esta espelunca depois de muitos anos a labutar a sério. Uma pessoa morre de tanta labuta, sr. Ricardo. De sol a sol, sem descansos para a mulher, copos e os miúdos. Foi labutar e padecer. Muito sinceramente, nunca fui homem de andar pelo parque mayer ou nas meninas coristas.
Queria estudar, um dia disse a mim próprio...
- Ó Alfredo, podias ir tirar um curso de contabilidade. Tens a cabeça ainda fresca para essas coisas!!!
Foi assim que me tornei contabilista à noite. Chelas inteiro vem bater-me à oficina por alturas de IRS. Digo-lhe do coração, que você sabe que não sou homem de mentir, em Abril ou Maio, tenho aqui mais gente a tentar safar-se ao fisco, do que a querer passar o respectivo automóvel na inspeccção. Diria que é uma questão de prioridades. Tudo na vida, é uma questão de escolha.
Agora ocorreu-me...
- Por acaso, o Sr. Ricardo, já fez a declaração ????
Não, pois bem, se quiser já sabe que pode contar com o Alfredo. Você sabe que já o safei muita vez.
- No mato, é que safei muitos. Em Angola, salvei muitos amigos. Muitos!!!
Volta e meia vem-me a guerra à cabeça. Porra, um gajo saía para o mato, e tinha licença para matar. Muitas vezes ia com a magana para o mato, mas nunca abandonava a coronha, não fosse o diabo pintar feio. Qualquer coisa que mexia, eu, balázio nos cornos. Limpei vários assim. Várias dezenas...
- Ó Alfredo, vai trabalhar a sério. Isso de contar histórias ao Sr.Ricardo chega. Toda a gente sabe que tu nunca saíste do quartel...durante a guerra!!!!!
Aturo as malcriações deste gajo há mais de 40 anos. Porra, já não podemos voltar ao tempo de suposto heroísmo, que vem logo este pulha a lembrar-me que hoje se olhar para baixo, não consigo ver. Dramático, não conseguir ver...apenas a protuberante barriguinha...apenas...
- Há que apreciar um bom OUVIDOR de histórias. O Sr.Ricardo põe-se mesmo a jeito!!!