Não gostava da sala de aula, do silêncio e concentração que o professor exigia. Gostava do espaço-recreio, de subverter no fumo do cigarro, de tecer os amores e desamores da minha turbulenta adolescência. Não estava propriamente interessada na aprendizagem, o espelho começara a reflectir uma beleza que eu deixaria de reconhecer. Aquela não era eu.
- Estás-me a ouvir, Ana ? Será que me estás a ouvir?
Não me recordo certamente da primeira vez que te vi. Talvez tenha esquecido. Sei que conheci a inveja em ti. Eras linda, uma excelente aluna, todos gostavam de ti, eras POPULAR. Eu era apenas a tua amiga. Muito passado deixou de existir, mas lembro-me que me sentia mais segura, mais estável ao teu lado. Trouxeste alguma ordem à minha vida. Ordem e estrutura.
- Não sei o que dizer!
Estávamos em pólos opostos. Eu, faladora, espalhafatosa, fazia questão de dizer a tudo e todos que estava presente. Tu, calma, inibida, tornavas-te presente gradualmente, sem grandes alaridos. Eu e tu, uma amizade imprevista, um vínculo improvável.
- Tinha tanta coisa para te dizer…
Fiz-me na rua, nos cento e sessentas ou na actual Rua Palmira Bastos. O lote 166 e a rua feita de putos imberbes e meninas em pudica adolescência, delimitavam o meu espaço vital. Tu vinhas de Moscavide, terra que ostenta uma profunda tristeza, no semblante dos seus edifícios. Cinzenta, ogre, suja. O teu sorriso escondia a mesma tonalidade.
- Deixei os meus filhos com a minha sogra. Já sabes, não param de fazer merda.
Em casa, o meu pai apresentava-se em soluços, sempre de passagem. De vez em quando parava por Portugal. A minha mãe esfalfava-se para levar a sua prole a bom porto. Eu não lhe facilitava a vida, ora o excesso de peso, ora a escola, ora o comportamento destravado. Às vezes também sentia o teu olhar de reprovação, um olhar terno, compreensivo, um olhar irmão.
- Será que tu me ouves? Tenho a certeza que sim…
Crescemos com itinerários diferentes. Peguei ao trabalho cedo, peregrinei ainda por alguns cursos, mas sentia a urgência do trabalho. A restauração sob diversas formas desenhou o que tem sido a minha vida profissional. O teu itinerário recente dava-me conta de alguém com formação académica sólida a errar numa dependência bancária. Muitas contas, créditos e débitos, e o sentimento de não identificação que saltava à vista de todos. Não gostavas de sorrir para o senhor cliente.
- Não sei o que vai ser da minha vida. Sabes como é…a correria de sempre…
Semanalmente, dividíamos as nossas angústias da vida adulta. Os dislates do trabalho, o crescimento sinuoso dos meus filhos, a tua relação conjugal, planos de viagens, novelas e filmes, financiamentos a acumular, os gajos bons e os assim-assim, o desconforto permanente com o corpo, a doença que começara a aparecer. Muito devagar.
- O meu irmão também está aqui. Veio comigo, eu não consegui vir sozinha…
Muito devagar. FILHA DA PUTA. FILHA DA PUTA. FILHA DA PUTA. Apareceu sob a forma de alergia, e foi assumindo diferentes diagnósticos. O corpo lentamente começara a mudar, lentamente deixaste de te sentir mulher. As chagas queimavam em lume brando, e o meu sentimento de impotência crescia a ritmo de galope. Uma raiva profunda de não te sentir acompanhada, cuidada. Por onde andou o teu marido, por onde andou o senhor pavão?
- Força, minha querida. Tu és forte!! Sei que vais superar tudo isso…
Senti o fim. A tua falsa anuência com a cabeça segredava-me isso. Foi a nossa despedida. A nossa última grande conversa. Não estávamos em minha casa, estávamos numa Unidade de Cuidados Intensivos. Volto a essa conversa em todos os instantes da minha vida e dou-me conta que me ensinaste a olhar mais uma vez para o futuro. Os meus filhos. O meu amor. A minha família. Olhar para a frente.
- Estou, sempre estarei.