A Sr.ª Delfina
Na aldeia de Póvoa de Midões não há homens. Não literalmente mas, tal como na cena inicial no cemitério do último filme de Almodóvar, é como se estivessem todos enterrados e apenas soubéssemos da sua existência através das conversas das mulheres. Quem se levantar cedo e andar pelas ruas de cinzento baço, branco brilhante, pontuadas de preto, do granito, ainda cobertas pela alvura da geada nocturna, apenas vê o movimento quase homogéneo das mulheres, ora para a igreja, ora para o cemitério.
Digo quase homogéneo porque novamente os homens marcam presença, sem serem vistos, nos trajes femininos. As viúvas envergam o lenço negro que lhes cobre todo o cabelo grisalho e as casadas distinguem-se pela roupa que varia entre o branco e as diferentes tonalidades de castanho, como num retrato sépia. De facto, se o mundo se resumisse a Póvoa de Midões nunca se teria inventado o Kodachrome (aquele mesmo da música do Paul Simon) e um simples retrato seria ainda um processo de largo minutos envolto em roupas de Domingo. Se exceptuarmos a invasão de emigrantes do mês de Agosto e a antena parabólica no telhado da Casa do Povo poderia dizer-se que aldeia estava parada no tempo de um outro senhor.
É preciso olhar muito atentamente para o bulício feminino para encontrar a excepção a este padrão. Mais precisamente é preciso olhar atentamente para o que a Sr.ª Delfina traz debaixo do braço depois de sair da Casa do Povo. Aninhado no sovaco do mesmo braço que carrega o típico saco do pão, ainda tecido em algodão, podemos ver um exemplar do Diário Económico. A Sr.ª Delfina a meio da manhã, entre os afazeres da horta e a lida dos animais, liga a powerbox no canal Bloomberg, folheia o jornal e, nos dias bons, naqueles em que sorri e esfrega as mãos, faz uma chamada para Lisboa e dá ordens de compra ou venda. Nas tardes em que passo pela quinta, para provar do bolo mármore ainda quente ou de uma fatia de bola bacalhau, sou habitualmente bombardeado com histórias do mundo dos negócios, mexericos de aldeia e perguntas sobre o mundo de lá de fora: “Hoje ganhei 2.000€ em acções da PT, é este Verão que se arranja o telhado”, “Achas que apesar da minha idade eu ainda conseguia aprender a mexer na Internet? Era mais simples do que estar sempre a ligar para a correctora”, “Olha, já me esqueci como é que ponho os cd’s que me deste da Amália a tocar, vais ter que me explicar outra vez”.
Hoje (dia 5) a conversa foi diferente. Sentada na mesa da cozinha e antes mesmo de me estender uma cadeira, a Sr.ª Delfina disse: “ Sabes que dia é hoje? Se fosse viva, ela fazia hoje 55 anos. Sabes que fui eu quem a apanhou do chão? Chamaram a parteira tarde demais. A tua avó não se mexia com dores e fui eu quem a foi apanhar do chão.”
Digo quase homogéneo porque novamente os homens marcam presença, sem serem vistos, nos trajes femininos. As viúvas envergam o lenço negro que lhes cobre todo o cabelo grisalho e as casadas distinguem-se pela roupa que varia entre o branco e as diferentes tonalidades de castanho, como num retrato sépia. De facto, se o mundo se resumisse a Póvoa de Midões nunca se teria inventado o Kodachrome (aquele mesmo da música do Paul Simon) e um simples retrato seria ainda um processo de largo minutos envolto em roupas de Domingo. Se exceptuarmos a invasão de emigrantes do mês de Agosto e a antena parabólica no telhado da Casa do Povo poderia dizer-se que aldeia estava parada no tempo de um outro senhor.
É preciso olhar muito atentamente para o bulício feminino para encontrar a excepção a este padrão. Mais precisamente é preciso olhar atentamente para o que a Sr.ª Delfina traz debaixo do braço depois de sair da Casa do Povo. Aninhado no sovaco do mesmo braço que carrega o típico saco do pão, ainda tecido em algodão, podemos ver um exemplar do Diário Económico. A Sr.ª Delfina a meio da manhã, entre os afazeres da horta e a lida dos animais, liga a powerbox no canal Bloomberg, folheia o jornal e, nos dias bons, naqueles em que sorri e esfrega as mãos, faz uma chamada para Lisboa e dá ordens de compra ou venda. Nas tardes em que passo pela quinta, para provar do bolo mármore ainda quente ou de uma fatia de bola bacalhau, sou habitualmente bombardeado com histórias do mundo dos negócios, mexericos de aldeia e perguntas sobre o mundo de lá de fora: “Hoje ganhei 2.000€ em acções da PT, é este Verão que se arranja o telhado”, “Achas que apesar da minha idade eu ainda conseguia aprender a mexer na Internet? Era mais simples do que estar sempre a ligar para a correctora”, “Olha, já me esqueci como é que ponho os cd’s que me deste da Amália a tocar, vais ter que me explicar outra vez”.
Hoje (dia 5) a conversa foi diferente. Sentada na mesa da cozinha e antes mesmo de me estender uma cadeira, a Sr.ª Delfina disse: “ Sabes que dia é hoje? Se fosse viva, ela fazia hoje 55 anos. Sabes que fui eu quem a apanhou do chão? Chamaram a parteira tarde demais. A tua avó não se mexia com dores e fui eu quem a foi apanhar do chão.”
1 comentário:
Quem diria no meio do nada uma agente de bolsa !
Vai entender este mundo !
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