domingo, novembro 26, 2006

Soneto

De frente para azul quase infinito do mar


SONETO DA FIDELIDADE
(Vinicius de Moraes)

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
o seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Estoril, Outubro, 1939


Camila Morgado na caixa do lado, da BSO de Vinicius

sexta-feira, novembro 24, 2006

Fazer acrobacias...

Encontrei-te...
Aprendi a escalar montanhas. Sou alpinista
Encontrei-me...
Em plena acrobacia



Camila Morgado in Vinicius

OS ACROBATAS
(Vinicius de Moraes)

Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
o grande mar de estrelas
Através de milénios de luz.
Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
na calma convulsa da ascensão.
Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
lá onde o infinito
de tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
Tensos
pela corda luminosa
que pende invisível
e cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
do grande mar de estrelas
onde dorme a noite
Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
na fibra do pescoço
os pés agudos em ponta.
Como no espasmo.
E quando
lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus
Num último impulso
libertados do espírito
despojados da carne
Nós nos possuiremos.
E morreremos
Morreremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ouve lá, senhor Golfinho...


Entrar com passos seguros, o sono de quem irrompe o dia a horas madrugadoras, sentar-me no lugar de sempre, colar-me à janela, espreitar de soslaio a vizinhança cercana, apalpar os próximos minutos, colar-me à janela. Uma nova mirada aos semblantes laterais, quiça, a beleza num piscar de olhos....

- Ouve lá, Senhor Golfinho, este governo chupa-nos até o tutano

Primeiras gordas na Sexta ou Y, talvez Kyoto dos jardins japoneses com desenho harmonioso de crisântemos, flôr de lótus, e a silhueta de um corpo imaginado por entre quimonos vários. Cai a chuva, o dia assume os tons da noite, a sucessão de aldeias desta urbe, as caras familiares, os putos e as suas malas Sportbilly a caminho da escola. Espera-os aquelas aulas de matemática, em que a vergonha e a inibição obriga a professora a apontar o menino Golfinho na pauta colorida em 3 por 4...

- Menino Golfinho, venha ao quadro resolver esta equação de segundo grau!!!

Às vezes, o meu lugar permanece ocupado. Pressinto logo o que aí vem. Começo a sentir as silhuetas avantajadas de uns e umas, a roçar pegajosamente o meu ombro esquerdo. Efeitos outros de uma mini e sande de corato depois do Olivais e Moscavide aviar o Alcochetense com uma valente goleada, uma cintura que cresce proporcionalmente ao número de filhos, ou a bejeca despachada ao fim do dia quando o patrão insiste em chamar o senhor Golfinho ao seu escritório. A frieza tirana dos números logo dispara...

- Senhor Golfinho, ou isto melhora ou pode-se dar o azar de ....

O oitenta um da carris - Prior Velho/ Praça do Comércio - está a chegar a um dos seus destinos, a estação fluvial do tejo. Levanto-me a tempo de sentir aquele bafo de uma senhora bonita que insiste em mostrar a todos, que boca lavada e hálito fresquinho é a primeira condição para que o dia possa ter contornos positivos.

- Senhor Golfinho, às vezes os odores podem tramar a vida de uma pessoa!!!

A ponte, o exercício de trigonometria (seno+coseno+ seno), duas formas triangulares em suspenso sobre o rio. Sinto-me sempre um personagem do Smoke, a voltar ao mesmo lugar a cada manhã, quase à mesma hora, para flagrar a respiração própria de cada dia através DA imagem. Para Paul Auster, a esquina, no meu quotidiano a ponte.

- Senhor Golfinho, saudades à patroa!!!

Volto a dormir até à cidade de sonho e futuro como se afirma em outdoor camarário. Quando acordo, sento-me ao lado de uma criança que me mostra um futuro onde deixou de ser possível sonhar. Será??

quarta-feira, novembro 08, 2006

A Sr.ª Delfina

Na aldeia de Póvoa de Midões não há homens. Não literalmente mas, tal como na cena inicial no cemitério do último filme de Almodóvar, é como se estivessem todos enterrados e apenas soubéssemos da sua existência através das conversas das mulheres. Quem se levantar cedo e andar pelas ruas de cinzento baço, branco brilhante, pontuadas de preto, do granito, ainda cobertas pela alvura da geada nocturna, apenas vê o movimento quase homogéneo das mulheres, ora para a igreja, ora para o cemitério.
Digo quase homogéneo porque novamente os homens marcam presença, sem serem vistos, nos trajes femininos. As viúvas envergam o lenço negro que lhes cobre todo o cabelo grisalho e as casadas distinguem-se pela roupa que varia entre o branco e as diferentes tonalidades de castanho, como num retrato sépia. De facto, se o mundo se resumisse a Póvoa de Midões nunca se teria inventado o Kodachrome (aquele mesmo da música do Paul Simon) e um simples retrato seria ainda um processo de largo minutos envolto em roupas de Domingo. Se exceptuarmos a invasão de emigrantes do mês de Agosto e a antena parabólica no telhado da Casa do Povo poderia dizer-se que aldeia estava parada no tempo de um outro senhor.
É preciso olhar muito atentamente para o bulício feminino para encontrar a excepção a este padrão. Mais precisamente é preciso olhar atentamente para o que a Sr.ª Delfina traz debaixo do braço depois de sair da Casa do Povo. Aninhado no sovaco do mesmo braço que carrega o típico saco do pão, ainda tecido em algodão, podemos ver um exemplar do Diário Económico. A Sr.ª Delfina a meio da manhã, entre os afazeres da horta e a lida dos animais, liga a powerbox no canal Bloomberg, folheia o jornal e, nos dias bons, naqueles em que sorri e esfrega as mãos, faz uma chamada para Lisboa e dá ordens de compra ou venda. Nas tardes em que passo pela quinta, para provar do bolo mármore ainda quente ou de uma fatia de bola bacalhau, sou habitualmente bombardeado com histórias do mundo dos negócios, mexericos de aldeia e perguntas sobre o mundo de lá de fora: “Hoje ganhei 2.000€ em acções da PT, é este Verão que se arranja o telhado”, “Achas que apesar da minha idade eu ainda conseguia aprender a mexer na Internet? Era mais simples do que estar sempre a ligar para a correctora”, “Olha, já me esqueci como é que ponho os cd’s que me deste da Amália a tocar, vais ter que me explicar outra vez”.
Hoje (dia 5) a conversa foi diferente. Sentada na mesa da cozinha e antes mesmo de me estender uma cadeira, a Sr.ª Delfina disse: “ Sabes que dia é hoje? Se fosse viva, ela fazia hoje 55 anos. Sabes que fui eu quem a apanhou do chão? Chamaram a parteira tarde demais. A tua avó não se mexia com dores e fui eu quem a foi apanhar do chão.”

terça-feira, novembro 07, 2006

Para o caderninho de S.

Na tasca da esquina 4 olham para um daqueles jogos pequenos de uma qualquer liga estrangeira que a Sport TV insiste em transmitir pela noite dentro. Enquanto como uma daquelas sopas que já só se encontram em tascas de esquina e em casas de senhoras idosas, com talos grandes de couve e feijão inteiro, os 2 velhos da frente preferem Sagres. E, a julgar pela contagem de garrafas em cima da mesa e pelo levantar do tom de voz, já vão avançados na sua demonstração de afecto pela cerveja nacional.
Inevitavelmente, eu e o senhor de bigode grisalho por detrás do balcão somos agora mais espectadores daquele diálogo do que do jogo que passa na televisão. Um deles chora a morte da mulher como se a tivesse enterrado hoje e bebe para esquecer. Pelas respostas do outro percebemos que ela já se foi faz quase uma década e bebe apenas por solidariedade.

- Ó Joaquim, traz mais duas!
- Mais duas não, que já não consigo fazer o 4.
- Não consegues fazer o 4 porque nunca foste à escola. Traz mais duas que eu pago!